
Durante o SET EXPO 2023, realizado no início de agosto em São Paulo, o ministro das Comunicações Juscelino Filho anunciou que o órgão está preparando uma série de medidas e decretos a serem lançados até o fim de 2023. Dentre essas medidas, uma pode ser a pá de cal na esperança daqueles que sonham em ver a faixa de ondas curtas cheia de novo: a migração voluntária de concessões em onda curta e tropical para o FM estendido.
Pode parecer uma coisa sem sentido, já que o número de rádios ativas nessas faixas hoje pode ser contado nos dedos. Mas a mina de ouro não está nas concessões operantes, e sim nas engavetadas. Agora, cabe perguntar: houve demanda real dos radiodifusores pra que essa “migração” acontecesse ou foi só uma ideia mirabolante da equipe do ministro?
RETROSPECTO

Há exatamente 100 anos, em 1923, a empresa de Guglielmo Marconi realizava os primeiros experimentos em 11000 kHz, a partir de um transmissor instalado na Inglaterra. A intenção era ver se essa faixa podia proporcionar transmissões claras e nítidas mesmo a milhares de quilômetros da sede. Após os testes bem-sucedidos, começaram a surgir transmissões na nova faixa de ondas curtas (dos 2 aos 30 MHz) em diversos países.
Não há registro exato de qual pode ter sido a primeira emissora exclusivamente de onda curta a operar no Brasil; desde o surgimento do meio no país, a maioria das estações que apareciam já tinham um canal de OC reservado. A transmissão em solo brasileiro da Copa de 1938 só foi possível graças às ondas curtas. Desde a sua criação até meados dos anos 80, a Voz do Brasil tinha uma frequência exclusiva de OC por onde as rádios pegavam o sinal às 19 horas.
A profusão maior das ondas curtas foi a partir das décadas de 1940 e 50, na chamada “era do rádio”. Além da Rádio Nacional, emissoras como Tupi, Bandeirantes, Sociedade da Bahia, Jornal do Commercio, Gaúcha, Globo e tantas outras impulsionaram seus sinais para todo o território nacional por essa faixa. Enquanto hoje muitos culpam a TV Globo pelo alto número de “torcedores mistos” no Norte e Nordeste, a real causadora disso foi a onda curta, pois foi através das rádios do eixo Rio-SP que o número de torcedores dos times desses estados aumentou, ainda na primeira metade do século 20.
Enquanto no resto do mundo a onda curta adotava um caráter diplomático e quase sempre estatal, no Brasil ela foi aproveitada tanto por emissoras públicas quanto privadas. Mas a partir da década de 1980, as estações privadas começaram a se desfazer de suas concessões de OC, seja por razões econômicas ou pelo baixo retorno. Em entrevista, Alfredo Raymundo disse certa vez que bastou mostrar o quanto a OC revertia em faturamento pra Rádio Sociedade da Bahia – quase nada – para eles ordenarem imediatamente o fim das transmissões na faixa.
Com o passar dos anos, o número de concessões ativas só foi diminuindo. O aumento das interferências e a baixa qualidade dos receptores só piorou a situação. No Nordeste, as últimas rádios ativas em OC e OT findaram suas emissões em meados dos anos 2000, enquanto que no Norte algumas ainda sobrevivem até os dias atuais. No entanto, mesmo fora do ar, as concessões pra essas faixas ainda estão valendo, e é esse o pulo do gato que o ministro do Dia do Cavalo observou.
A PRIMEIRA “MIGRAÇÃO”
Em 2013, em meio à indefinição sobre qual meio digital o Brasil adotaria para suas rádios no futuro, o Ministério das Comunicações surge com uma ideia milagrosa: passar as concessões de onda média (AM) para a faixa de FM. A experiência já havia acontecido em países menores, e neles foi bem-sucedida. Mas num país continental como o nosso, tinha como dar certo?
Depois do pontapé inicial dado pela Rádio Progresso de Juazeiro do Norte – CE, mais de 1000 rádios Brasil afora seguiram o canto da sereia e realizaram a troca de concessão. Processos que custam no mínimo 100 mil reais engordaram os bolsos de muitos “técnicos em radiodifusão”, empresas especializadas e da própria União, que condicionou o pagamento de todas as dívidas pendentes antes da dita migração ser concluída.
Não vou me ater aqui a questões de programação pós-migração, mas sim ao conceito em si. Nesse processo, a rádio tem que devolver sua licença de operação em AM à União. Em troca, ela recebe um canal reservado em FM, sem precisar passar por concorrência. Mas continua tendo que pagar todos os encargos que uma FM novata paga, sem descontos nem condições especiais. Pra ser migração de fato, a concessão tinha que ser automaticamente transferida, sem ônus para o radiodifusor. Mas como isso não movimenta a indústria…
QUEM SE BENEFICIA NESSA HISTÓRIA?
Levantamento de 2009 da ABERT mostrou que, no Brasil, haviam 66 concessões de onda curta e 74 de onda tropical ativas. Hoje, o número é bem menor, pois apenas 13 frequências (divididas entre 7 emissoras) irradiam regularmente em OC. Em onda tropical, o número varia pelo fato de alguns transmissores serem ligados apenas em ocasiões especiais, mas não chega a 15 emissoras.
Tendo isso em conta, a quem o projeto de decreto de migração de onda curta pro FM beneficiaria? Historicamente, tanto OC quanto OT foram usados como canais auxiliares do AM/FM, sendo atreladas a essas concessões e tendo muito pouca ou nenhuma programação própria. Exceções existem, claro, como é o caso da Rádio Voz Missionária de Camboriú – SC, que surgiu na década de 1980 como filial da Rádio Marumby de Curitiba e depois foi adquirida pelos Gideões Missionários da Última Hora. Outra que também operava exclusivamente em OC era a Rádio Transmundial, com seus 3 transmissores em Santa Maria – RS. A mesma saiu do ar em 2018 após questões econômicas e hoje permanece como rede de rádios via satélite. Mas como dito acima, são exceções, não a regra.
Sendo assim, que sentido tem em reservar uma faixa no FM estendido para uma concessão preterida e engavetada há tempos? Ainda mais depois do gasto exorbitante que muitos donos de rádio tiveram com a migração do AM para o FM, sendo obrigados a vender as emissoras ou arrendá-las, jogando anos de história no lixo? A única saída plausível é usar as concessões de OC e OT como moeda de troca: vender as licenças nessas faixas pra quem queira colocá-las no ar em FM. Porque, de parte dos proprietários originais, nunca cheguei a ver nenhuma manifestação em reativá-las nesse sentido.
Outras duas questões surgem: o grosso das concessões de onda curta e tropical está concentrado nas capitais, onde a própria faixa de FM estendido está mais do que abarrotada (vide Rio e SP). Jogar mais gente dentro do ônibus é a pior decisão a se fazer nesse momento, mesmo sendo uma “migração voluntária” (coisa que com certeza a equipe do ministro fará questão de esconder, assim como foi com o AM). E também: geralmente cada frequência de ondas curtas está atrelada a uma concessão separada, devido ao espaço de tempo entre a instalação de cada faixa. Então presumamos: a Rádio Bandeirantes, inativa desde 2018 em OC, ainda tem em sua posse 3 canais de 25, 31 e 49 metros (ZYE 956, 957 e 958). Isso faria com que ela tivesse direito a 3 concessões no FM estendido de São Paulo? É algo a se observar.
E A NACIONAL DA AMAZÔNIA, COMO FICA?

Fundada em 1977 se aproveitando da estrutura faraônica da então Rádio Nacional do Brasil, a Rádio Nacional da Amazônia se tornou um canal importante de comunicação e integração entre os povos da região Norte e os demais pontos do país. Em 2017, quando um raio atingiu o parque de transmissões da Nacional em Brasília, milhares de pessoas em áreas remotas ficaram sem acesso à informação por meses a fio, até o restabelecimento total das frequências de 11780 e 6180 kHz em 2019.
Com esse possível decreto de migração de OC para FM, a Nacional da Amazônia também pode entrar na berlinda, já que mesmo sendo uma emissora estatal ela também teria direito a realizar a transferência de outorga. Nos últimos anos, o papel da Nacional tem sido diminuído e questionado por adeptos das tecnologias mais modernas, que acham que basta pôr uma antena de satélite na casa de cada ribeirinho e voilá! Internet de graça para todos. Os custos de implantação e a manutenção, porém, fazem desse “mundo ideal” um sonho distante. Tem lugares na Amazônia Legal onde 20MB de Internet não saem por menos de 100 reais. Por aí, vocês já imaginam.
Outra alternativa levantada é a das chamadas Repetidoras Terrestres de Rádio (RTRs), estabelecidas na última gestão federal. Com elas, rádios de qualquer ponto da Amazônia Legal podem instalar transmissores em inúmeras cidades, se assim o acharem benéfico. Talvez pra Nacional da Amazônia, seria uma maneira de continuar atendendo o público-alvo nos 7 estados da região Norte. No entanto, novamente os custos de instalação e manutenção esbarram no sonho. Isso sem falar do comportamento topográfico do FM, que não se dá bem com regiões de mata fechada. Os entendidos não querem admitir que um transmissor de OC de 100 KW ligado 16 horas por dia pode ser mais econômico e eficiente do que mil repetidoras espalhadas na floresta.
LIBERA GERAL
Nos grupos de radioescutas (pessoas que ouvem rádio por hobby) no Facebook e Whatsapp, não é difícil ver alguém captando emissoras livres em onda curta. Em países como Holanda e Dinamarca, os órgãos de radiodifusão permitem que qualquer cidadão consiga licença para ter seu transmissor de OC, desde que não passe de uma potência limite (geralmente 100 Watts). Mesmo com a limitação, emissoras como a World Music Radio, sediada na Dinamarca, podem ser ouvidas no Brasil no fim de tarde.
Em nosso país, a legislação é inflexível quanto ao uso irregular de espectro de frequência. Operações e mais operações da Polícia Federal pra fechar FMs piratas são capa de portais, ganham os grupos de Whatsapp e botam medo em quem anda fora da lei. Mas com as ondas curtas é diferente: devido à dificuldade de triangulação de sinais e à falta de pessoal para fiscalizar a banda, as OCs viraram “terra de ninguém”. Não é difícil ver emissoras livres em operação na faixa, independente de horário ou região do país. Claro que não são muitas, o número supera por pouco a quantidade de concessões legais ativas em onda curta, mas é uma demanda que não pode ser ignorada.
Então porque, em vez de se preocupar com a mudança das concessões inativas de onda curta e tropical (de alcance nacional/regional) pro FM (local e olhe lá se não tiver morro no meio), não buscam um meio de facilitar a operação nas faixas de onda curta por entidades civis? Já que é uma faixa fadada ao abandono, como diz aquele funk, “deixa os garoto brincá”. Se não há interesse de alguns em continuar, tem outros que querem…
Equipamentos não faltam: inúmeros transmissores sem uso graças à “migração AM-FM” podem ser adaptados para uso em onda curta. Até mesmo aqueles de fabricação caseira poderiam ser homologados, claro, passando por rigorosa inspeção. Arrisco até dizer que tem transmissor caseiro mais regulado do que o de muita FM comercial de grande porte por aí…
Seria a oportunidade perfeita pro atual governo demonstrar que está realmente preocupado em democratizar o acesso à comunicação, em vez de colocar o canal do partidão no satélite ou pedir frequências de rádio comunitária pro MST…
FICANDO PRA TRÁS
Como o decreto de migração OC-FM foi anunciado por alto pelo ministro, sem maiores detalhes, o que veremos nos próximos meses serão muitas especulações. Não se sabe nem se essa ideia sairá do papel, de tão absurda que é. Mas o que me chateia é: enquanto o mundo discute o padrão de TV 3.0 e o rádio DRM/DAB+, nós estamos aqui trocando um meio analógico por outro analógico e tão antigo quanto. É graças a políticos de carreira com zero conhecimento do meio como Juscelino Filho, Gilberto Kassab, Fábio Faria dentre tantos outros que a radiodifusão no Brasil chegou a esse estado de hoje. E a tendência, infelizmente, é só piorar.
Ian José Silva é radialista (MTE 1700/PI) e mantém desde 2017 canais no YouTube dedicados à preservação da memória do rádio e TV.
Ótima matéria Ian. Infelizmente os políticos deste país não ligam pra nada! Deveriam era adotar o drm nas ondas curtas e passar a Rádio Nacional da Amazônia para o digital. Isso sim seria um avanço.
Amigo Ian. Parabéns por esse excelente artigo.
Saudações desde Cabedelo-PB.
Zé Ronaldo
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