Ainda tem graça escutar ondas curtas?

O consumo de rádio no Brasil e no mundo - Mídia Market

Ora essa. Mas que pergunta idiota!, dirão alguns de vocês. Outros dirão que não categoricamente, sem nem ler a segunda linha em diante desse texto. Mas esperem: antes de me jogarem às piranhas, prestem atenção no que tenho pra dizer. Radioescuta que se preza sempre vai achar algo novo pra escutar, por mais que o cenário atual pareça dizer o contrário. Duvida? Então me acompanhe que lhe explicarei melhor…

O TÃO FALADO DECLÍNIO DAS ONDAS CURTAS

Já há uns 30 anos, desde o fim da Guerra Fria, tem se notado uma diminuição crescente no número de emissões em ondas curtas. À medida que os antigos países do bloco socialista foram se emancipando de Moscou e pioraram economicamente, os primeiros cortes foram na área das comunicações. Hoje, a última remanescente do leste europeu nas OCs – a Rádio Romênia Internacional – também enfrenta problemas de infraestrutura e financiamento. Mas por enquanto ela segue firme, ainda que com emissões reduzidas. 

Do outro lado, os cortes do governo americano interromperam uma trajetória de mais de 7 décadas da Voz da América, que se encontra num limbo jurídico com seus funcionários sem saber se voltarão ou não ao trabalho. Enquanto o laranjão não se decide, o parque de transmissões de Greenville – que estava em risco de condenação devido aos equipamentos ficarem muito tempo parados – sobrevive em operação tartaruga, mantendo alguns transmissores em operação. Os demais parques do BBG na Ásia e Oceania já “foram de base”, não havendo previsão de retorno.

Mas mais do que o peso econômico, a chegada da Internet foi o fator-chave pro “abandono” da faixa. Hoje, com satélites jogando Internet a baixo custo e um celular na mão de cada um, todos podem ser consumidores e produtores de conteúdo. Ainda que não seja algo unânime, África e Ásia – os dois continentes onde a faixa de transmissões internacionais mais se popularizou – já saíram do limbo digital. Até os cubanos conseguem escapar da censura do regime Díaz-Canel graças às boas e velhas VPNs. O que antes só se ouvia uma hora por dia, religiosamente, e se a propagação ajudasse, hoje pode ser acessado a qualquer momento e lugar com alguns cliques.

Estações religiosas como a Rádio Adventista Mundial (a nossa Novo Tempo aqui no Brasil) e a Rádio Transmundial disponibilizam podcasts e pendrives com gravações de seus programas para comunidades mais isoladas. As rádios estatais como BBC, Deutsche Welle, Rádio França Internacional – que eram figurinhas carimbadas no dial até os anos 2000 – hoje focam em conteúdo para seus sites e emissoras parceiras. Pra não dizer que elas saíram das ondas curtas, elas ainda operam sim, mas aos poucos vão reduzindo investimentos. 

O parque de transmissões de Greenville, NC, EUA, usado pela Voz da América (créditos: clui.org)

O ÚLTIMO A SAIR, APAGUE A LUZ

A cada ano que passa, as notícias sobre as ondas curtas parecem piores. O parque da KTWR de Guam foi desativado agora em 2025, pelo alto custo de manutenção frente aos desastres naturais que a ilha enfrenta. A NHK extinguiu suas emissões em vários idiomas (português incluso), a WHRI (que alugava espaço para KBS, Voz do Vietnã etc.) fechou pelo FCC não aprovar a venda dela para outra rádio… Isso sem falar na Voz da Grécia, Rádio Áustria Internacional, Channel Africa, RAE Argentina, Voz do Irã e tantas outras que deixaram o dial por inúmeras questões. A única presença inabalável até agora é a das emissoras da Rádio Internacional da China (e suas divisões nacionais – CNR – e regionais – PBS), a maioria operando com 500 KW.

Aqui no Brasil, o cenário é pior: nos últimos 10 anos, vimos estações como a Rádio Bandeirantes, Aparecida, Canção Nova, Evangelizar (antiga RB2), Rádio Congonhas, RTM, Clube do Pará, Marajoara, Alvorada de Londrina, Super RBV abandonarem a faixa. E depois que o ministro Juscelino Filho estendeu o processo de transferência das outorgas de AM para o FM às concessões de onda curta e tropical, o que já era pouco ficou ínfimo. Os poucos beneficiados já foram logo tratando de desligar seus transmissores e preparar a papelada. O golpe maior foi a Brasil Central de Goiânia anunciar, de forma tímida e limitada a uma nota à imprensa, o desligamento definitivo dos seus transmissores de 4985 e 11815 kHz. Tudo bem que eles já estavam sucateados e operavam dia sim, dia não. Mas qual a necessidade de, já tendo 2 FMs no papo – RBC FM e a migrante dos 1270 AM -, o Governo de Goiás ainda migrar mais duas rádios?

No momento em que escrevo esse texto, somente as rádios Municipal de São Gabriel da Cachoeira – AM (3375), Difusora de Manaus – AM (4805), Rural de Tefé – AM (4925) e Rural de Coari – AM (5035 kHz) ligam esporadicamente seus transmissores de OT, em ocasiões especiais. Em ondas curtas, apenas a Inconfidência de BH (6010 e 15190), Voz Missionária de Camboriú – SC (5940, 9665 e 11750), 9 de Julho de SP (9819) e Nacional da Amazônia (6180 e 11780 kHz) mantém seus transmissores em funcionamento.

TEMPESTADE EM COPO D’ÁGUA

Pra mim (pra mim) é exagero dizer que não tem mais nada pra escutar em ondas curtas. Claro que o ato de ligar o rádio e escutar uma voz falando em dialetos chineses a cada 2 segundos é chato, mas o diferencial está em buscar coisas diferentes na faixa. Opções não faltam: quem é de ouvir radioamador escuta os 80, 40, 20 metros, faixa do cidadão. Quem gosta mais das estações utilitárias pode tentar escutar a WWV, CHU, RWM, os Volmets… E as estações internacionais ainda seguem, em menor quantidade mas seguem: Rádio Pilipinas, Voice of Thailand, BBC, Radio Mali, Rádio Exterior de España, Voz da Coreia, KBS, Voz de Turkiye, Akashvani (All India Radio) são alguns dos exemplos. Coisa pra escutar não falta; o que falta é foco e conhecimento do que você quer escutar.

Para os que querem ouvir conteúdos em português, abaixo segue uma pequena lista de emissoras internacionais que ainda transmitem em nosso idioma. Valorizem, escutem e principalmente: reportem suas escutas a eles, para que a sobrevida delas no dial seja maior. Não incluirei aqui a Rádio Internacional da China porque ela vive repetindo desde 2018 a mesma sequência de músicas em suas frequências destinadas ao serviço lusófono. Enfim, um desperdício sem sentido.

  • Rádio Vaticano: diariamente, às 22h de Brasília (01h UTC), em 7305 kHz – Santa Maria di Galleria, Vaticano
  • Rádio Transmundial: diariamente, a partir de 16h (19h UTC), em 7410 kHz – Manzini, Essuatini
  • WLC – World’s Last Chance: diariamente, de 19h às 2h (22h às 05h UTC), em 9330 kHz – Monticello, ME, EUA
  • KNLS Palavra Alegre: diariamente, de 18h às 20h (21h às 23h UTC), em 9765 kHz – Mahajanga, Madagascar
  • Voz da Türkiye: diariamente, às 21h (0h UTC), em 9870 kHz – Emirler, Turquia
  • Rádio Exterior de España: de segunda a sexta, às 20h (23h UTC), em 15390 e 17715 kHz – Noblejas, Espanha
QSL Palavra Alegre 9765 kHz - Peter's DX Corner

A Rádio Palavra Alegre, com estúdios em Belo Horizonte, é excelente pagadora de QSLs e promove concursos anuais entre seus ouvintes (créditos: petersdxcorner.nl)

DINAMITANDO UM PAIOL DE BOBAGENS

O termo “rádio pirata” dói em mim. Não por ter meu programa veiculado em algumas delas, mas por considerar que elas fazem o que as comerciais/comunitárias/educativas podiam fazer e não fazem. É fato que boa parte das rádios livres são mera emulação destas primeiras, mas ainda assim, chamemos os bois pelo nome devido.

O Brasil observou um crescimento no número de estações livres operando em ondas curtas de uns 10 anos pra cá. A falta de atenção da Anatel à faixa fez muita gente se encorajar a encomendar ou montar um transmissor por conta própria. “Mas não teve aquela operação fechando a Rádio Casa 8000 em ondas curtas anos atrás?” Sim, mas o foco da dona Ana era a FM deles e não a OC. Não quero com isso incentivar ninguém a botar um transmissor no ar, mas sabemos que essas operações que eles fazem e que enchem de manchetes sensacionalistas os portais país afora não passam de meros bodes expiatórios.

E o pessoal que faz rádio livre em OC no Brasil manda muito bem, digassi di passagi. A variedade de estações e estilos de programação faz lembrar como era o dial nos anos 80, onde tínhamos as poderosas Globo, Record, Tupi, Bandeirantes, Jovem Pan e demais emissoras regionais povoando os 75, 60, 49, 31, 25, 19, 16 metros… Abaixo, como forma de utilidade pública, segue uma lista das estações livres que operam em ondas curtas montada pelo amigo Rafael Justo. Tire print ou decore as frequências e boa caçada!

Resumindo e reiterando: quem quer ouvir ondas curtas não pode ser preguiçoso. Há que se saber o que se quer ouvir e como encontrar essas estações. Uma dica final para os iniciantes: favoritem o site short-wave.info. Ele será seu guia na descoberta e reconhecimento de novos e velhos logs.

E se você agora estiver pensando: “é fácil falar isso de escutar qualquer coisa tendo um Degen, XHDATA ou Choyong da vida… Quero ver fazer isso com um radinho de feira!”, calma! Ainda abordaremos a polêmica dos receptores aqui um dia. Mas, se nossos antepassados faziam milagres com meros radinhos de galena, podemos muito bem deixar de churumelas e queimar pestanas e neurônios em prol da perpetuação do hobby com o que temos à mão…

Ian José Silva (MTE 1700/PI) é radialista e apresentador do programa Budega do Maguila. Ingressou no hobby em 2016 e, mesmo afastado da radioescuta, ainda liga o Degen de vez em quando pra ouvir a Nacional da Amazônia.

2 comentários em “Ainda tem graça escutar ondas curtas?”

  1. Pratiquei dexismo na minha adolescência, na década de 90. Varava as noites e madrugadas na sintonia de um receptor Philco bem Sambado. Meu bairro pertence a um parque industrial, mas a recepção era de boa naquela época. Depois de todos esses anos, no corrente resolvi comprar um XHDATA D-808 e, para minha decepção, não consigo captar quase nada, só muito ruído e interferência. Não satisfeito, pensando ser algum problema com o receptor resolvi investir em um QODOSEN DX-286. Frustração total. O mesmo resultado.

    O fato é que a minha região está habitada por elementos geradores de ruído. Meus vizinhos possuem painéis solares. Aí já viu. Enfim, investi uma grana e estou completamente frustrado.

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